Em entrevista ao Redes Cordiais, a historiadora Mary Del Priore analisou a evolução e a dinâmica das fake news na história. Para a professora e autora de diversos livros, é preciso ficar atento e sempre questionar a quem interessa aquela informação. José Bonifácio, por exemplo, usou um jornal para fazer valer sua versão de “patrono da Independência”. Del Priore brinca que ele foi o fundador das fake news no Brasil.
Mary del Priore também ressaltou a importância de não deixarmos a “amnésia histórica” inibir nosso aprendizado, ainda mais em tempos de pandemia. “A história nos convida a pensar — Como é que outras vidas foram vividas, que outras experiências foram vividas além da minha e isso me traz alguma forma de informação nova.”
Confira a íntegra da entrevista.
RC: Como as fake news aparecem na história?
Parece incrível mas a possibilidade dos chamados fatos alternativos existe há muito tempo. Se pegarmos a Idade Média, tudo que se disse naquela época, a inquisição, a caça às bruxas, as fake news das comunidades ibéricas… Acusavam judeus de envenenar poços de água… Há muito tempo que as notícias falsas causam transtornos para a sociedade.
Nas Ordenações Filipinas, uma espécie de Código Civil durante o reinado de Felipe, há todo um capítulo sobre os mexeriqueiros. O mexerico, as fake news têm o dom de controlar a comunidade e está a serviço de um poder. A notícia falsa controla e envenena.
Outro caso gritante de fake news foi durante a Revolução Francesa, com Maria Antonieta e Luiz XVI. Nessa época, a imprensa já estava bastante sofisticada e os pasquins começavam a vir também ilustrados. Maria Antonieta então vai virar uma mulher com furor uterino, que tinha milhares de amantes, lésbica desenfreada. E o coitado do Luiz XVI, um Rei impotente e bobo. Esses pasquins foram de alguma maneira a forma de contaminar o povo francês contra o antigo regime.
Aqui no Brasil também tivemos nossa cota de fake news. Brinco que o fundador das fake news foi José Bonifácio, patrono da Independência. Vale a pena esclarecer que, depois que José Bonifácio cai, destituído por D. Pedro do ministério, ele resolve fundar um jornal para atirar contra D. Pedro e a Corte Portuguesa. É nesse jornal que José Bonifácio vai inventar a narrativa sobre a sua participação na construção da independência. Ele foi muito ativo, mas a independência foi feita por um conjunto de homens com ideias muito diversas e longe de ser um processo linear.
Durante a gripe espanhola, o Brasil também vai conviver com fake news. Lembro que a gripe não nasceu na Espanha e sim nos Estados Unidos. Virou gripe espanhola porque a Espanha era um país neutro durante a Primeira Guerra Mundial, porém apoiava os Alemães contra os Aliados. O que se contava na época era que os alemães engarrafavam a gripe espanhola e jogavam no mar para que pessoas desavisadas abrissem as garrafas e a peste se difundiria. Então tivemos esse mito da “peste engarrafada” durante a Primeira Guerra Mundial.
RC: Lembra muito o que estamos vivendo agora com todas as teorias de conspiração sobre o surgimento do coronavírus, né?
A gente sempre precisa de um bode expiatório.
Quero lembrar outra fake news que circulou no Brasil. Quando Getúlio (Vargas), que pendia muito na época da Segunda Guerra Mundial para o lado dos Alemães, vê que tem que passar para o lado dos Aliados, ele começa a controlar o abastecimento das cidades. Foi uma coisa cruel. Alguns historiadores mostram que a fome e o aumento no preço dos alimentos foi uma jogada política. Getúlio queria uma espécie de unanimidade da população brasileira em favor dos Aliados e aí ele dá esse golpe. Tivemos essa fake news do problema de abastecimento colocando a culpa no inimigo para poder criar uma mentalidade de apoio ao Governo.
RC: O relato histórico que você faz mostra as diferentes motivações (política, econômica, social…) das fake news. Como identificá-las?
A gente sempre precisa se perguntar a serviço de quem a informação está. A quem serve essa notícia? Quem vai ganhar com a fake news? Para que ela serve? A gente tem que aprender, além de saber se é falso ou verdadeiro, a se perguntar a quem serve, para ir um pouco mais fundo, além da leitura que normalmente fazemos do jornal, do rádio, da televisão ou da tela do computador.
RC: Qual o impacto das ondas de desinformação na história?
Para o historiador, essas questões são muito importantes quando têm consequências, como foi o caso da Revolução Francesa. Já uma notícia como a da fome, na época da Segunda Guerra Mundial, pode passar batido. Então é importantíssimo o papel da memória para que as pessoas justamente tenham essa percepção de que as coisas se repetem, de que é preciso tomar cuidado e de onde foi que nós erramos. Não é que não conseguimos corrigir nada com as lições dos nossos antepassados… Porém o que a história faz é nos convidar a pensar — “Como é que outras vidas foram vividas, que outras experiências foram vividas além da minha e isso então me traz alguma forma de informação nova.”
Sempre que há consequências brutais, sempre que uma fake news induz a uma revolta ou a muita gente morrendo, o fato é explícito e os historiadores não terão nenhuma dificuldade de analisar ou interpretá-lo depois. Mas muitas fake news acabam caindo no que os historiadores chamam de amnésia histórica e aí é preciso um trabalho de formiguinha para tirar, lá do fundo do poço, esse balde de novas informações.
Mary Del Priore é historiadora, autora e palestrante na Casé Fala
Para contratar palestra e consultoria de Mary Del Priore só enviar e-mail para contato@casefala.com.br